Uma disputa nos bastidores entre o presidente do STF (Supremo Tribunal Federal), Luiz Fux, e o ministro Gilmar Mendes tem travado o julgamento que decidirá sobre a implementação do juiz das garantias no Brasil. Fux havia marcado a análise do tema para 25 de novembro, mas retirou as ações de pauta por causa da dificuldade para chegar a um acordo com o colega a respeito da mudança regimental que torna obrigatória a remessa de decisões monocráticas ao plenário.
Oficialmente, o presidente da corte afirma que adiou o julgamento porque o Congresso está com “discussões avançadas” para aprovação de prazos mais amplos para instituição do novo modelo de condução das investigações criminais. Líderes do Legislativo, porém, criticam o fato de o ministro segurar sua decisão individual e não submetê-la ao plenário e pressionam o Supremo a desemperrar o tema o quanto antes.
O juiz das garantias foi aprovado pelo Congresso em 2019 e determina a divisão da responsabilidade de processos criminais em dois juízes: um autoriza diligências da investigação e o outro julga o réu. A medida é enaltecida pela ala garantista do direito, que costuma prezar pelas garantias individuais dos investigados, mas sofre resistência entre magistrados.
Fux suspendeu a instituição do modelo em janeiro de 2020 e até hoje não levou o caso para análise do colegiado. Na mesma época, em paralelo, o tribunal havia iniciado o debate sobre uma mudança regimental para que decisões individuais sejam automaticamente remetidas ao plenário. Fux pretendia aprovar essa medida e usá-la como uma das bandeiras de sua gestão à frente do Supremo.
Em mais de uma oportunidade, ele afirmou que a alteração iria reinstitucionalizar o STF, que passaria a falar a uma só voz e deixaria de ser formado por 11 ilhas, com ordens individuais em profusão que nunca são analisadas pelo conjunto da corte. No ano passado, por exemplo, os ministros deram mais de 1.700 decisões monocráticas. No novo modelo, elas seriam automaticamente submetidas ao conjunto da corte.
Gilmar era favorável à mudança, mas condicionou a aprovação da nova regra à fixação de uma transição que obrigasse o julgamento colegiado das monocráticas já em vigência. Isso forçaria o julgamento da decisão de Fux de suspender o juiz das garantias, que é defendido nos bastidores por Gilmar.
O presidente até pautou o tema para análise conjunta como sinalização para destravar a emenda regimental que acaba com a monocratização na corte, mas divergências sobre as regras para a remessa obrigatórias das decisões individuais ao plenário o levaram a retirar o caso de pauta.
Um dos motivos do descompasso é a resistência de Gilmar em aceitar que decisões em habeas corpus também sejam enviadas automaticamente ao plenário. Isso porque, a ideia é levar esses casos ao plenário virtual e há uma resistência da ala garantista da corte em analisar processos que tratam da liberdade de investigados, uma das garantias constitucionais com maior proteção das leis, no ambiente online.
Interlocutores do presidente da corte também creditam a retirada do juiz das garantias de pauta à pressão de entidades que representam a magistratura e são contrárias à ideia de dividir a responsabilidade de processos criminais em dois juízes. Fux é juiz de carreira, percorreu todas as instâncias da magistratura e costuma ser sensível às demandas da categoria.
A dificuldade de relacionamento entre Fux e Gilmar é outro fator apontado como motivo para o impasse sobre o julgamento dos dois temas. Ambos já chegaram protagonizar desentendimentos públicos e internamente um acordo entre os dois sempre é visto com desconfiança e com baixa probabilidade de dar certo.
A aprovação do juiz das garantias pelo Congresso foi cercada de controvérsia. O instituto era criticado pelo então ministro da Justiça, Sergio Moro, que argumentava que haveria acúmulo de trabalho para os magistrados. Na época, o presidente do STF era o ministro Dias Toffoli, que defendia ser possível redistribuir os processos sem a necessidade de novas contratações e sem sobrecarregar juízes.
Defensores da proposta também diziam que o objetivo era dar mais imparcialidade aos julgamentos, na esteira da revelação de mensagens que sugerem a colaboração entre integrantes da força-tarefa da Operação Lava Jato em Curitiba e o então magistrado Moro. O principal ponto questionado no texto aprovado no Congresso foi a falta de um vacatio legis –intervalo entre a publicação e a vigência de uma lei– compatível com a mudança proposta com a criação do juiz das garantias.
A lei passou a vigorar após 30 dias da publicação oficial, prazo considerado insuficiente pelo Judiciário. Nos bastidores, congressistas que encabeçaram a discussão do pacote anticrime reconhecem que o Congresso errou ao não estabelecer um prazo adequado.
A partir daí, começou uma articulação para que esse período fosse de cinco anos a partir de 2019, quando o texto foi sancionado. Para agilizar a mudança, defendida pela ala do Congresso contrária à Operação Lava Jato, deputados decidiram incluir o juiz das garantias com o prazo de cinco anos a partir de 2019 dentro do novo Código de Processo Penal que está sendo debatido por grupo de trabalho na Câmara.
A intenção é revogar os dispositivos que tratam do instituto que estão na lei sancionada em dezembro de 2019.
Os cincos anos a partir de 2019 são um período considerado adequado pelos congressistas para que se estabeleçam as condições de adotar o juiz das garantias no país. Ou seja, se o novo código for aprovado em 2022, por exemplo, faltaria menos de três anos para que o instituto pudesse começar a ser aplicado.
No entanto, o fator eleições já começou a pesar nas discussões. Uma saída costurada entre Legislativo e Judiciário envolveria uma modulação, pelo STF, dos efeitos para dizer que o juiz das garantias é constitucional, mas com validade a partir de determinada data. Essa solução pode começar a sair do papel a partir de setembro de 2022, quando a ministra Rosa Weber assume a presidência. Ela poderia pautar o julgamento, em uma maneira de fortalecer o Supremo na relação com os demais Poderes.
Questionado pela reportagem, o STF reiterou o teor de nota emitida no dia 17 de novembro, quando Fux teve uma reunião com os deputados João Campos (Republicanos-GO) e Cezinha de Madureira (PSD-SP) para tratar da questão.
“Em virtude das discussões avançadas dos referidos projetos de lei, cuja aprovação repercute sobremaneira no julgamento das ações constitucionais, o ministro Luiz Fux retirou as ações de pauta para que o Congresso amadureça o debate sobre o tema”, afirmou. A corte disse ainda que “não há previsão para julgamento da emenda regimental sobre decisões monocráticas”.
Por Matheus Teixeira e Danielle Brant / Folhapress