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“LÍDERES DE FACÇÕES PODEM BUSCAR SE ELEGER PARA GARANTIR IMPUNIDADE”

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A aprovação da chamada PEC da Blindagem pela Câmara dos Deputados acendeu debate no meio jurídico e político sobre os limites da prerrogativa parlamentar e o risco de impunidade para crimes cometidos por quem ocupa cargos no Congresso Nacional. A proposta, que agora segue para análise no Senado, altera a Constituição para determinar que deputados, senadores e até presidentes nacionais de partidos com assento no Legislativo só possam ser processados criminalmente ou presos mediante autorização prévia da respectiva Casa.

O juiz Ivanaldo Bezerra Ferreira dos Santos, da 6ª Vara Criminal de Natal, que recebeu nota máxima em sem mestrado na PCU, avalia, em entrevista ao Diário do RN, que a mudança representa um grave retrocesso. “A Constituição já prevê a possibilidade de prisão do parlamentar somente em flagrante de crime inafiançável. A PEC mantém essa regra, mas acrescenta que, mesmo nesses casos, será necessário que a Câmara ou o Senado delibere sobre a manutenção da prisão”, afirmou em entrevista ao Diário do RN. O magistrado observa que, ao submeter ao crivo político o que já está definido pela Constituição como exceção, o Congresso cria uma barreira artificial que pode favorecer criminosos.

No texto aprovado pela Câmara, está expresso que, desde a diplomação, os membros do Congresso “não poderão ser presos, salvo em flagrante de crime inafiançável, nem processados criminalmente, sem prévia licença de sua Casa”. Em termos práticos, isso significa que, mesmo diante de delitos como homicídio qualificado, latrocínio, estupro ou crimes de corrupção, um parlamentar poderá escapar da responsabilização caso seus pares decidam não autorizar a abertura da ação penal ou a manutenção da prisão em flagrante.

O juiz, que tem especialização em Direito Processual Penal, lembra que a Constituição já estabelece um núcleo de direitos e princípios que não podem ser alterados por emendas, as chamadas cláusulas pétreas. “A PEC é inconstitucional em vários aspectos. Ela viola o princípio da separação de poderes e o princípio republicano da isonomia. A isonomia significa um princípio muito próprio e caro ao Estado Democrático de Direito. Aquelas pessoas que ocupam a mesma posição jurídica precisam ter o mesmo tratamento. É um princípio republicano. Então, à medida que ele confere um tratamento diferenciado ao parlamentar em relação aos demais cidadãos e que não tem nada a ver com a prerrogativa que afeta ao parlamento, ele está violando o princípio da isonomia de tratamento. Conferir tratamento diferenciado a parlamentares diante da lei rompe com o fundamento do Estado Democrático de Direito”, pontuou.

A polêmica se torna ainda maior quando se observa o contraste entre os crimes afiançáveis e inafiançáveis. Pela legislação brasileira, crimes afiançáveis são aqueles de menor gravidade, como furto simples, estelionato ou alguns delitos contra a honra, geralmente punidos com penas mais brandas. Já os crimes inafiançáveis incluem tortura, tráfico de drogas, terrorismo, crimes hediondos e ações de grupos armados contra a ordem constitucional. A lista de crimes hediondos, definida pela Lei nº 8.072/1990, inclui homicídio qualificado, estupro, estupro de vulnerável, feminicídio, latrocínio, entre outros. São condutas graves, que pela Constituição não admitem fiança e deveriam, em tese, receber tratamento rígido do Estado.

A PEC, no entanto, abre uma brecha. “Mesmo em flagrante de crime inafiançável, a deliberação será necessária. Se a Casa decidir pela não manutenção da prisão, o parlamentar será solto. Além disso, se a Câmara ou o Senado não autorizarem a abertura da ação penal, o processo nem sequer começa. E se não houver deliberação em tempo hábil, há ainda o risco de prescrição”, advertiu Bezerra.

Para o juiz, esse mecanismo pode transformar o Parlamento em escudo para criminosos e concorda com a análise que até mesmo membros de facções criminosas terão portas abertas para o Congresso Nacional.

“Eu vejo a possibilidade de portas abertas para facções criminosas, porque a PEC traz essa blindagem. Líderes de grupos organizados, com poder financeiro, podem buscar se eleger para garantir impunidade. Isso não é imunidade parlamentar, é impunidade”, disse. Ele lembrou que, recentemente, investigações já revelaram conexões entre organizações criminosas e agentes políticos, o que reforça a gravidade da mudança.

Voto secreto
O magistrado também aborda a determinação de voto secreto, incluída na proposta. Depois de ser retirado, o artigo foi retomado à PEC após uma manobra patrocinada por Hugo Motta (Republicanos-PB), presidente da Câmara dos Deputados, na tarde desta quarta-feira (17), um dia após a PEC ser aprovada.

“Fere o princípio da publicidade. Não só isso, mas também trata de interesse puramente corporativo. A emenda constitucional viola inclusive outros princípios, como princípios da impessoalidade. Ele não trata de interesse público, ele está tratando de interesse corporativo, não somente os parlamentares. Então, nesse aspecto, também se questiona porque não dá publicidade, você não vai saber quem votou em quem”, avaliou.

Além da blindagem, a PEC também amplia o foro por prerrogativa de função, garantindo que presidentes nacionais de partidos com representação no Congresso tenham seus processos julgados no Supremo Tribunal Federal. Na avaliação de críticos, trata-se de um reforço ao distanciamento entre representantes políticos e a lei aplicada ao cidadão comum.

O caminho da proposta ainda está em aberto. O Senado será a próxima etapa e a PEC precisará ser aprovada na Comissão de Constituição e Justiça antes de ir a plenário, onde são necessários 49 votos para a sua aprovação. A expectativa é de um debate mais rigoroso, tanto sobre o mérito quanto sobre a constitucionalidade.

No entanto, para juristas, como Ivanaldo Bezerra, a essência da proposta já traz em si um problema estrutural. Ao condicionar a responsabilização criminal de parlamentares à deliberação política de seus pares, a PEC da Blindagem desloca o interesse público para segundo plano e arrisca comprometer a confiança da sociedade nas instituições.


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