O dia marcava 11 de setembro no calendário. O mundo relembrava a barbárie do terrorismo que derrubou as torres gêmeas nos Estados Unidos e matou a paz.
Aqui, o Estado foi surpreendido com fotos de um homem sobre outro, que havia sido amarrado com cordas, foi arrastado e estava deitado no chão, sob o olhar de comando daquele que se julgava o próprio feitor de uma escravidão fora de época.
Tudo isso aconteceu na bela, pequenina e fria Portalegre, interior do RN, em pleno século XXI, era dos avanços tecnológicos e da maior surra universal que a humanidade levou de um vírus invisível e mortal. Mas parece que não aprendeu a lição.
O homem que subjugava o outro era branco; o que estava amarrado, negro. Paradoxalmente, amarrado em corda da cor verde, que simboliza esperança.
Era como se a escravidão tivesse sido recuperada de um ‘pergaminho’ vergonhoso, gravuras de um túnel do tempo indesejado, extrato triste de um período em que o dinheiro pagava por pessoas, desde que a cor da pele fosse preta.
O caso, inevitavelmente, foi partidarizado. Como tudo atualmente.
O homem das cavernas de hoje, tinha como referência uma foto em que aparecia como fiel depositário do fanatismo político, envolto o rosto em uma máscara com a imagem do presidente Jair Messias Bolsonaro. Aí já há uma incoerência: Máscara e Jair não combinam.
Porém, o fato em si foi conduzido sob uma atmosfera puramente partidarizada.
Era um ‘bolsonarista’ que havia praticado o ato, como se o simples fato de ser adepto deste ou daquele político, o transformasse em monstro ou santo.
É natural que o fanatismo produza tentativas de repetição de atos ou admiração por posturas. Seja para o bem ou para o pior.
Mas, nesse caso, ali não estava um bolsonarista. Não era um lulista, ou fanático por qualquer espécime de nossa fauna política atual. Apesar da inevitável influência.
Ali estava um animal vestido como ser humano, irracional em sua brutalidade, insano em sua sanha justiceira, que se agigantava diante do minúsculo ser indefeso. Minúsculo na reação. Ou falta dela.
Ali estava um monstro com seus instintos mais primitivos ativados em modo ‘on’ com força total turbinada diante de um negro aprisionado pelas cordas e pela cor.
Sim, certamente que a cor pesou no ‘castigo’ do capataz escravagista, que agiu na senzala a céu aberto, sob a omissão dos que viam a cena e se sentiam impotentes para reagir. Ou gostavam do que viam.
Um branco não teria o mesmo tratamento medieval sem a ‘intromissão’ de ‘solidários’ anônimos. Nem que fosse somente com a voz dissonante. De longe.
Negro, pobre, praticando atos condenáveis como o furto, matrimônio perfeito para o esteriótipo criado pela sociedade ao longo dos anos; serviu para delimitar a escravidão moderna aceitável; seja pela omissão tácita ou pelo silêncio cúmplice.
Tal qual o feitor de escravos se transformava em um submisso ser abjeto sob as ordens do senhor de engenho, o ‘valente’ do chicote contemporâneo foi preso e, pasmem, não reagiu à força policial.
É sempre assim. Os valentes diante dos pequenos se apequenam ainda mais diante dos grandes.
Eles geralmente admiram os grandes pela força que acham que têm, num gesto de covardia subserviente que outrora impunha aquele que estava sob suas botas, suas cordas e suas ‘ordens’.
A barbárie foi materializada com nome e sobrenome.
Alberan Freitas é o comerciante que se transformou no senhor de engenho do Oeste Potiguar. A vítima, Luciano Simplício, quilombola resistente, escravo moderno de feitor de mente doentia. Órfão de pai, mãe e respeito.
Agora, trazendo o fato à atmosfera política atual, não podemos deixar de lembrar que o monstro da chibata de Portalegre é um autêntico e fiel eleitor e admirador do presidente Jair Messias Bolsonaro. Outro não envolveria seu rosto de forma permanente com a imagem de seu ídolo.
Como tal, deve ser adepto do fechamento do Supremo Tribunal Federal, instância maior da Justiça que o homem das cavernas tanto abomina. Pois imagina ter seu próprio Código Penal. Detalhe: Nem todos os eleitores ou admiradores do presidente pensam como ele ou são adeptos do fechamento de instituições. Há exceções.
Porém, para sair das grades e retomar sua liberdade, o frozen do chicote quente de Portalegre precisa de uma decisão judicial chamada Habeas Corpus ou algo similiar, que o permita deixar o presídio provisório para ter a liberdade física e exercer seu ‘direito’ à defesa. Sim. Por mais cruel ou brutal que possa ser o crime, todos têm o direito à defesa. Na democracia é assim.
No caso do escravagista potiguar, a defesa de um ato que julgou poder fazer num suposto Estado anárquico em que ele é a própria lei e que agora busca pela força do Estado Democrático de Direito para se ‘proteger’ e se defender de atos que praticou, amparado numa lei própria de sua convicção racista, é surreal ser prisioneiro das instituições que abomina.
Portanto, independentemente de sua convicção política ou ideológica, é natural divergir de decisões judiciais.
Mas é imperioso respeitar as instituições que alicerçam a vida em sociedade, pilares do Estado Democrático de Direito.
Afinal, Churchill um dia disse, com toda ironia de sua inteligência: “Democracia é a pior forma de governo, com exceção de todas as demais.” Ou, fiquemos com a variante do mesmo autor: “A democracia é o pior dos regimes políticos, mas não há nenhum sistema melhor que ela.”
O monstro medieval da chibata não virtual precisa da democracia para poder exercer seus dotes totalitários.
É o lindo paradoxo que só a democracia permite materializar.
Apesar da dor e tristeza que ainda me causam as lembranças daquela reportagem, nos mostrando cenas de um fato deplorável e desumano, parabenizo o Túlio de Lemos pela oportuna e maravilhosa crônica.
Enquanto houver um grito que seja contra a violência humana e o desamor haveremos de ter esperanças no amanhã.
Bom domingo a todos !