Fonte: Revista Crusoé
Prestes a pendurar a toga, o atual decano do Supremo Tribunal Federal, Marco Aurélio Mello, se sente ainda mais confortável agora para falar de uma condição que ele sempre fez questão de cultivar: a de “outsider” da corte, ou, como prefere dizer, de ministro que não integra “Clube do Bolinha”, como ele chama o grupo de colegas que se reúnem para compartilhar seus votos antes de julgamentos importantes em plenário. Recentemente, Marco Aurélio completou 31 anos no Supremo, o que representa mais de um terço de sua vida. No período, sete presidentes passaram pelo Palácio do Planalto, incluindo o primo Fernando Collor, que o indicou para a corte, em 1990. O atual, Jair Bolsonaro, o ministro enxerga com olhos críticos – especialmente ao tratar do critério anunciado para a escolha de seu sucessor.
Nesta entrevista a Crusoé, Marco Aurélio fala da responsabilidade de Bolsonaro sobre a tragédia da pandemia no Brasil e sobre um eventual processo de impeachment. Também revela o desejo para que um nome da chamada terceira via consiga romper a polarização política nas eleições de 2022 e discorre sobre o processo de destruição da imagem do ex-juiz Sergio Moro e da Lava Jato, além de explicar decisões polêmicas que proferiu, como a soltura do traficante André do Rap, e abordar temas que são tabus no STF, como a suspeição de ministros em julgamentos e o desconforto com a condução do chamado inquérito do fim do mundo. Para Marco Aurélio, se a corte hoje vem sofrendo críticas da população, é porque há algo em sua atuação que precisa ser examinado – e o melhor resposta para as cobranças, defende, é a transparência. O ministro afirma que, a partir de julho, irá aproveitar o ócio para mergulhar na leitura de romances e para a assistir às suas séries de TV preferidas. Eis o que ele disse.
O sr. sempre fala com certo saudosismo dos tempos em que chegou ao Supremo, há 31 anos. Qual é a diferença daquele colegiado para este do qual está se despedindo agora?
No tempo da velha guarda eu podia prever a concepção do caso submetido a julgamento. Atualmente, já não posso prever. O colegiado é uma caixa de surpresas. Outro dado que me faz ter saudade da velha guarda é que o tempo era otimizado. O relator sempre levava seu voto estruturado e os demais votavam no improviso. Como costumo dizer no jargão carioca, de gogó. E isso era muito bom. Para acompanhar o relator, como preconiza o ministro Moreira Alves, bastava dizer “de acordo”. Agora, cada colega leva um voto extenso e profere quase todo ele. Há exceções. O ministro Ricardo Lewandowski e o ministro Dias Toffoli às vezes votam de improviso. Mas a maioria leva um voto escrito e daí surge uma incongruência. Se eu sou o relator, por exemplo, eu busco o poder de síntese, conciliando celeridade e conteúdo, porque a fila de processos precisa andar. Às vezes, como uso o poder de síntese, o voto do colega que não é relator chega a ser mais longo do que o meu. E olhe que eu fundamento as decisões. Por isso que eu digo, sem demérito algum para a composição atual do Supremo, eu tenho saudade da velha guarda.
Como funciona o tal “Clube do Bolinha” que o sr. diz existir na corte e do qual se recusa a participar?
Vamos rememorar o passado. O ministro Moreira Alves, por exemplo. Nem a assessoria do gabinete dele conhecia o voto dele. Ficava numa pasta com chave que ele só abria na hora do julgamento. Hoje em dia, o que se tem? O relator encaminha aos colegas um voto preparado. Eu não recebo voto de ninguém porque eu quero estar solto na bancada, decidindo segundo minha ciência e consciência, e nada mais. E também não compartilho o meu voto. O que tenho percebido agora é que, diante de situação que tem repercussão maior no cenário nacional, eles (refere-se a outros ministros) chegam a entrar em contato pela internet, por WhatsApp, eu não sei, e comparecem afinados quanto a um determinado resultado. Para mim, haver isso no colegiado não é bom porque o colegiado é um somatório de forças distintas. Nós nos completamos mutuamente. Se já de início você tiver a concepção do relator, a tendência é você aderir. É a lei do menor esforço, inerente ao ser humano. Por isso penso que não cabe costurar decisão. Um colega chegou até a aventar a possibilidade de, nesses casos de maior repercussão, nós nos reunirmos, acertamos a decisão e colocarmos a capa para simplesmente fazer um arroubo de retórica, um teatro. E o advogado que fosse à tribuna falaria às paredes, não aos integrantes da corte.
Muitas vezes o Supremo é criticado por se portar como onze tribunais distintos, por causa do elevado número de decisões monocráticas e por rever jurisprudências de forma ocasional, como ocorreu na revisão da prisão após condenação em segunda instância. No caso, o sr. manteve sua decisão. Como o sr. enxerga essas críticas?
Você disse bem, e me fez Justiça. Desde o primeiro dia, ante o princípio da não culpabilidade, eu sustentei que não cabe inverter a ordem natural do processo, que é apurar-se para selar a culpa, executar-se a condenação e prender-se. O que ocorre é que o Supremo recebe um número de processos inimaginável. Hoje, prevalecem praticamente as decisões individuais. E o recurso ao colegiado muitas vezes cai em um automatismo tão grande que as razões apresentadas praticamente não são discutidas pelos colegas. Por isso que se diz muito que o Supremo hoje são onze Supremos. Sob a minha ótica deveria ser um único Supremo. E já não é porque temos hoje duas turmas, dois órgãos fracionados. O ideal seria a atuação do Supremo em colegiado maior, com as onze cadeiras ocupadas. Evidentemente, isso teria de passar por uma reforma processual e constitucional profunda para enxugar a competência do Supremo. Hoje, nós julgamos questões do direito penal e não apenas constitucional, por causa dos inúmeros habeas corpus que chegam, e daí entramos na matéria legal. O ideal seria transformar o Supremo em corte exclusivamente constitucional, para se manifestar sobre a harmonia da lei com a Constituição, mas por enquanto não é o que temos. Hoje eu costumo dizer que não sou mais um operador do direito, mas um estivador do direito. A partir do dia 5 (quando deverá se aposentar) a carga estará aliviada e não vou morrer de tédio.
Depois de tanta divisão no plenário, o Supremo demonstrou unidade recentemente no julgamento sobre a constitucionalidade do chamado inquérito do fim do mundo, que investiga supostas ofensas e ameaças contra os ministros. O sr. foi o único que votou contra e criticou a condução do inquérito pelo ministro Alexandre de Moraes. Ele segue em curso, sob total sigilo, após mais de dois anos. Por que o STF legitimou essa apuração conduzida por quem é, ao mesmo tempo, vítima e julgador?
Nós sabemos que a busca da responsabilidade penal cabe ao estado acusador, ao Ministério Público. O que ocorreu no caso foi que o (então) presidente (Dias Toffoli), ele próprio personificando a vítima, que era o Supremo, determinou a instauração do inquérito. E o pior é que pinçou o relator. Nem sequer houve a distribuição democrática para saber quem seria o relator. Escolheu o relator da preferência dele, o ministro Alexandre de Moraes. Esse inquérito está tramitando, e quando surge qualquer coisa que tenha relação mínima com a matéria básica, que seria divulgação de notícias contrárias ao Supremo e seus integrantes, há remessa do tema para o relator. Por isso, cheguei até a dizer que esse era o inquérito do fim do mundo. Nele cabe tudo.
Outro inquérito, também conduzido pelo ministro Alexandre de Moraes, apura os atos antidemocráticos. Como o sr. observa esses ataques feitos às instituições pelos apoiadores do presidente Bolsonaro e, às vezes, por ele próprio e pelos filhos dele?
De início eu percebo a crítica como construtiva, visando ao aperfeiçoamento das instituições. E essa visão deve ser a tônica no estado democrático de direito, já que é cláusula básica da Constituição Federal a liberdade de expressão. Claro que, se ocorre violência, essa violência deve ser mitigada, mas não mediante uma persecução criminal, a não ser que haja dano, seja pessoal ou patrimonial, a um integrante do Supremo. Por isso não concebo esse furor, quase um furor punitivo, quanto às manifestações. Afinal, a Praça dos Três Poderes é uma praça do povo. O que eu penso é que se deve encarar com naturalidade as manifestações. E elas, na maioria das vezes, visam ao resultado que é o anseio da maioria da sociedade, ou seja, elas são quase sempre procedentes. Quando há uma manifestação contrária a uma instituição, é porque ela não está realmente dentro do figurino institucional e seguindo as aspirações populares. E não pode a manifestação ser cerceada, sob pena de retrocesso.
Hoje temos percebido a volta daquele velho alinhamento entre os poderosos que possibilita a impunidade, uma espécie de acordão que tem reunido o establishment político do país. Que papel o Supremo vem desempenhando nisso a seu ver?
O Supremo não está engajado em qualquer política. A política do Supremo é única, de respeito à Constituição Federal, a lei das leis.
Mas o Supremo reviu decisões, como a da prisão após condenação em segunda instância, além de ter trancado ou arquivado investigações de corrupção envolvendo políticos. Isso não trouxe de volta a sensação de impunidade que a Lava Jato combateu?
É impensável se tentar negar, por exemplo, o trabalho desenvolvido pelo ex-juiz Sergio Moro em termos de combate à corrupção. A corrupção sempre existiu, mas não pode ter o diapasão maior que foi notado. E precisa ser combatida. Há que se distinguir situações. Evidentemente, o Supremo tem um compromisso de zelar pela supremacia de garantias legais e constitucionais. Por vezes, o Supremo é contra majoritário. Ou seja, para tornar prevalecente a Constituição, ele tem que empunhar uma bandeira que não é simpática à população. A população, de início, quer correção de rumos. Mas a correção de rumos não pode ocorrer mediante atropelos, a ferro e fogo. Isso precisa ser compreendido. Agora não há, e eu julgo por mim, uma visão voltada a simplesmente passar a mão na cabeça daquele homem público que claudicou na arte de proceder, como cometer desvio de conduta, seja o homem público que for.
Alguns ministros da Segunda Turma, ao julgar a suspeição do ex-juiz Sergio Moro, usaram as mensagens hackeadas da Lava Jato como “reforço argumentativo” para não apenas analisar a suspeição do Moro como colocar toda a Lava Jato em descrédito, apontando abusos na condução da operação. Como o sr. vê esse caso, em que o plenário já formou maioria em favor do ex-presidente Lula?
O sistema em si não fecha. Ou a prova é ilícita, e não tem qualquer serventia, qualquer valia, ou ela não é ilícita, e daí pode ser manuseada. No caso concreto, eu ainda vou votar agora no dia 23. Continuamos julgando a questão, muito embora a turma tenha apreciado um habeas corpus, que por decisão do ministro Edson Fachin tinha arquivado esse caso. Praticamente desarquivaram o caso e colaram essa pecha da parcialidade no ex-juiz Sergio Moro. É a pior pecha que pode ser colada na vida de um juiz. A ordem natural não me leva a conceber que alguém que foi aclamado como herói nacional possa, da noite para o dia, ante o diálogo mantido com uma das partes, que é a parte acusadora, ser tido como tendencioso. De início, eu presumo a isenção, não presumo o excepcional extravagante. Presumo uma postura digna por parte de um juiz, e não extravagante ou excepcional. Por isso, devemos atuar com uma certa cautela. Que houve um avanço presente no trabalho da 13ª Vara Federal de Curitiba no combate à corrupção, e todos nós somos interessados neste combate, houve. Temos que reconhecer.
A reação do sistema político à Lava Jato trouxe retrocessos. A Câmara, por exemplo, acabou de votar o afrouxamento da Lei de Improbidade.
Para mim, a Lei de Improbidade é uma lei que tem resultados positivos. Eu costumo dizer que no Brasil não precisamos de novas leis, não precisamos de mais leis. O que nós precisamos é de homens públicos que observem as leis reinantes. Não vejo como se pretende modificar para mitigar a Lei de Improbidade. Será que vivemos ares em que ela não é mais necessária? Não. Os desvios na arte de proceder no campo da administração pública existem e existiram sempre. E a Lei de Improbidade, sob a minha ótica, é uma lei positiva.
O Ministério Público já apontou algumas vezes a suspeição do ministro Gilmar Mendes em julgamentos relacionados a parentes da mulher dele, por exemplo. Recentemente, o ministro Dias Toffoli votou para anular a delação do ex-governador Sergio Cabral na qual ele era um dos acusados. Por que a suspeição de um ministro do Supremo é tratada como tabu e não é levada adiante para análise na corte?
O que eu penso é que não pode haver ideia pré-concebida. Não cabe no âmbito do Supremo o “não me toque”. Se é comigo, eu atuo objetivando afastar a suspeição. Mesmo porque o Supremo é o órgão máximo do Poder Judiciário. O exemplo vem de cima. E a pior coisa é um julgamento em causa própria. Nessa participação do ministro Dias Toffoli, se eu fosse presidente, eu questionaria a participação dele na anulação da delação do ex-governador Sergio Cabral porque ele seria, desde o início, um delatado. Como participar desse julgamento? Eu fiz isso quando houve um caso envolvendo um ex-presidente da República (Fernando Collor) que é meu parente. Mesmo não estando impedido pela lei no caso dele, eu não tinha obrigação de me dar como suspeito, mas me afastei do processo porque ninguém entenderia o meu voto. Se fosse para condená-lo, iam dizer que eu estava sendo mais realista do que o rei para mostrar independência. Se fosse voto a favor, iam dizer que estava votando para atender a consanguinidade, o que eu nunca faria. Agora mesmo, veio para mim um processo em que se ataca uma lei do Distrito Federal que prevê a distribuição dos honorários das causas aos procuradores do estado, o que eu sou contra. Minha filha é procuradora concursada do Distrito Federal. O que eu fiz? Eu assentei a minha suspeição. Não me senti numa situação confortável para votar.
O sr. foi criticado recentemente por uma decisão polêmica que levou à soltura do traficante André do Rap, foragido até hoje. Os advogados que fizeram o pedido eram ex-assessores do seu gabinete. Houve equívoco nessa decisão? Faria diferente hoje?
Eu não me arrependo de nenhum voto. A situação do processo envolvia o paciente André do Rap. Em primeiro lugar, eu não julgo segundo o paciente e nem segundo o impetrante. Julgo segundo o convencimento que eu formo, considerando os elementos existentes no processo. Em segundo lugar, não vejo quem está assinando a petição, a não ser que seja algo escancarado. Parece que a advogada que subscreveu a inicial do habeas corpus teria trabalhado no meu gabinete, não sei em que função. Eu tenho cerca de 40 servidores no gabinete. Agora, eu sempre entrei e saí do gabinete rapidamente. Trabalho em casa, sempre trouxe processo para casa. E não verifico, e não saio pesquisando para ver se há alguma coisa que me leve a ser tido como suspeito no processo. No caso do André do Rap, eu cumpri a lei. O que preceitua o artigo 316 do Código de Processo Penal? Que a prisão provisória vigora por 90 dias. Alegou-se, portanto, que ele já estaria preso havia mais de 90 dias e que não houvera a renovação dessa custódia. A lei prevê que pode haver a renovação, e certamente, na origem, alguém falhou. Ou o Ministério Público ou o próprio juiz, que poderia ter implementado a renovação, de ofício (sem que fosse provocado). Constatando o fato, ou seja, que ele estaria preso além dos 90 dias sem uma decisão renovando essa custódia, eu simplesmente cumpri a lei. Daí a celeuma toda. Um colega, o presidente Luiz Fux, ombreando comigo, cassou minha decisão e ele (André do Rap) já tinha colocado o pé na estrada e sumido do mapa. No plenário, eu disse que era inconcebível porque nós somos iguais, o presidente apenas coordena os trabalhos, não é um superior hierárquico. Mas o plenário resolveu decretar uma nova preventiva. E confirmou o ato dele, restabelecendo a custódia. Paciência. Colegiado é colegiado, é um órgão democrático por excelência e vence a maioria, e não a minoria.
O Brasil está próximo de atingir meio milhão de mortos por Covid-19. Isso está sob investigação na CPI no Senado. Mas com base em tudo que já se sabe, o sr. vê responsabilidade do presidente Jair Bolsonaro nessa tragédia?
Claro que eu não tenho o presidente da República hoje no banco dos réus, sendo eu incumbido de julgá-lo por crime comum. Mas, evidentemente, ele deve fazer um reexame quanto à postura inicialmente adotada, negacionista quanto aos nefastos efeitos da pandemia. Ele chegou mesmo a dizer que seria uma gripezinha, né? E com isso eu creio que de alguma forma a população baixou a guarda e chegamos a praticamente 500 mil mortos. É algo inconcebível. Agora, a CPI, que tem a tarefa própria de investigar isso, está ressaltando tudo o que nós sabemos de cor e salteado. Ou seja, que realmente o presidente da República subestimou a crise e deixou de adotar a coordenação que se imagina que tenha o poder central no trabalho de governadores e prefeitos. Quando eu enfrentei no Supremo a matéria alusiva à incumbência quanto ao trato da saúde, eu disse que a incumbência é do poder central, dos estados e também dos municípios. Claro que normatizar sobre a saúde cabe ao poder central, e que presumiríamos um trabalho de coordenação do presidente da República. Seria o que ocorreria de mais normal. Tivemos uma exceção, que ele marchou contra a tomada de providência e ainda chegou ao ponto de dizer que o STF o teria impedido de tomar providências. Não foi isso que ocorreu. O Supremo reconheceu o condomínio: ou seja, a tarefa dele, presidente da República, e dos governadores, dos municípios, prefeitos, quanto ao trato da saúde. Agora, temos que esperar para saber os desdobramentos.
Nesses 31 anos de Supremo, o sr. vivenciou dois processos de impeachment, de Fernando Collor e de Dilma Rousseff. O que o sr. pensa de um eventual processo de impeachment contra o presidente Jair Bolsonaro neste momento?
A situação ainda é embrionária, porque nós não temos sequer em tramitação um requerimento de impedimento do presidente da República, cujo processo tem que ser aprovado para remessa à Câmara dos Deputados. Agora, a repercussão internacional de se apear um presidente do poder é muito ruim. E nós já ultrapassamos a metade do mandato. Que ele complete o mandato e que se dê a palavra aos eleitores quanto ao que ele fez, porque ele se candidatará à reeleição. Aí, que digam se ele merece um segundo mandato de quatro anos ou não. Sem solavancos, sem atropelos, e sem pretensão de apear o presidente da República da cadeira ocupada. De início, eu sou contra afastar o presidente. Ele deve responder pelos atos praticados? Deve responder, mas observando o figurino instrumental previsto na Constituição.
O cenário eleitoral hoje aponta para a repetição da polarização entre Bolsonaro, na extrema-direita, e um candidato de esquerda, o ex-presidente Lula. O que o sr. pensa sobre essa polarização política? Acredita na possibilidade de uma candidatura competitiva na chamada terceira via?
O ex-presidente Lula foi praticamente ressuscitado politicamente quando se devolveu os processos dele à estaca zero, porque entendeu-se que a 13ª Vara não era competente para julgá-lo e, portanto, não persistem as condenações. Agora, o interessante em termos de democracia é que o leque se abra em termo de candidatos. Como eleitor, eu não gostaria de me defrontar com essa polarização, essa dualidade de candidatos, o atual presidente da República e o ex-presidente Lula. O ideal seria surgir uma terceira via. Um outro candidato. Mas é cedo ainda para nos anteciparmos ao que ocorrerá em 2022.
O sr. tem algum nome de preferência entre os que se apresentam como pré-candidatos?
Eu espero que se apresente alguém que seja merecedor do voto dos eleitores. Em 2017, fechando um seminário no fim do ano na Universidade de Coimbra, eu fui compelido a falar sobre essa tendência de se eleger um populista de direita para um cargo de direção maior. Aludi à Hungria, à Polônia, falei sobre o Trump e disse com todas as letras: temo pelo Brasil se for eleito presidente da República o deputado federal Jair Bolsonaro, que fez a vida dele batendo em minorias. É a minha visão. E o temor que tive não foi premonição, se revelou em termos de acontecimentos, considerando o desempenho dele no mandato. E agora, sou favorável à permanência dele na cadeira para se aguardar as eleições de 2022.
É o presidente Bolsonaro quem vai indicar o seu sucessor no STF, e ele já deixou claro que o escolhido terá de ser evangélico. O que acha disso? Quais critérios deveriam ser utilizados para a escolha do seu sucessor?
A escolha é do presidente da República. Agora, ele não deve escolher pela religião em si. Se for pela religião em si, teríamos um católico de batismo sendo substituído por um evangélico. Não é isso que está no figurino constitucional. O que precisa ter o candidato é ilibada conduta e um domínio que se presume técnico do direito. De qualquer forma, nós precisamos aperfeiçoar as instituições e ter realmente um crivo pelo Senado da República quanto ao perfil do indicado pelo presidente da República. Os atos são sequenciais. Se não houver aprovação pelo Senado, ele não será nomeado, evidentemente. Agora, a escolha é livre por parte do presidente. Eu só espero que realmente o escolhido esteja à altura não do sucedido, mas à altura da cadeira que será ocupada no Supremo, porque o Supremo tem a última palavra sobre as matérias. Depois que ele bate o martelo, não se tem a quem recorrer. Então, a envergadura da cadeira é que tem que ser percebida pelo candidato.
Qual é a avaliação do sr. sobre os nomes mais cotados para a vaga, o do advogado-geral da União, André Mendonça, o do presidente do STJ, Humberto Martins, e o do procurador-geral da República, Augusto Aras?
Em primeiro lugar, o presidente da República gosta de surpreender. Foi uma surpresa para todos nós a escolha do ministro Nunes Marques. Em segundo lugar, os dois mais mencionados pela imprensa estão, pelos cargos ocupados, credenciados: o procurador-geral da República e o doutor André Mendonça, que é advogado do quadro permanente da advocacia-geral da União e foi, até bem pouco tempo atrás, ministro da Justiça. Os dois estão credenciados. Agora, cabe ao presidente da República a escolha.
Um dos legados do sr. no STF é a TV Justiça, que deu mais visibilidade ao tribunal. O que mudou a partir das transmissões das sessões?
É mola mestra da administração pública, norma básica, a publicidade. A TV Justiça levou o Judiciário à sociedade. Ela fez com que a sociedade acompanhasse o dia a dia do Judiciário. Creio que foi um avanço, e não pode haver retroação quanto à publicidade. Penso que a TV Justiça, como ela revela a possibilidade de um controle externo do Supremo, contribui para melhores dias em termos de entrega na prestação jurisdicional.
Qual é a sua visão sobre ministros do Supremo que atuam próximos da política?
Antes da pandemia, com a roupa que eu fico em casa, eu saía aqui na 23 (refere-se à quadra onde mora, no Lago Sul de Brasília) e ia ao comércio local. Eu ia sem segurança. Me identificavam e me diziam: ministro Marco Aurélio, o senhor está aqui sem segurança? Eu dizia: ‘sim, sou um cidadão e presto contas aos contribuintes’. Toda vez que um integrante do Judiciário é fustigado pela população, ele precisa rever os atos que vem praticando. Alguma coisa não anda bem para ele ser fustigado pela população. Que percebam o juízo que a população tem sobre o desempenho e busquem proceder dentro do figurino constitucional e legal. Agora, repito: a melhor coisa em termos de dias melhores para a República é a publicidade. Devemos todos, principalmente os veículos de comunicação, estar vigilantes e criticando quem mereça, principalmente na administração pública.
Como o sr. gostaria de ser lembrado no futuro e o que pretende fazer após se aposentar, no início do próximo mês?
Sinto-me um homem com o sentimento do dever cumprido. Quero ser lembrado pelo que eu fui sempre como juiz. Pela minha atuação espontânea, independente, pela minha atuação corajosa. Sou um homem que tem estabilidade econômica e financeira. Não pretendo sair atrás da prata pela prata, ombreando, por exemplo, na disputa de clientela. Não. Não morrerei de tédio porque gosto muito de ler, sempre tive à mão um romance. E por que um romance? Porque nós nos defrontamos no romance com conflitos de interesses e adotamos posições com isso, aguçamos a sensibilidade de julgador. Sempre tive à mão um romance. Estou acabando agora um da trilogia da Hilary Mantel, a última obra sobre Henrique VIII. Sempre tive à mão um romance, e também gosto de ver as minhas séries. Eu peço que, com 75 anos de idade, muito embora a saúde esteja magnífica, eu tenha direito ao ócio com dignidade.
Fonte: REVISTA CRUSOÉ.