POR Marcelo Alves Dias de Souza
Procurador Regional da República • Doutor em Direito (PhD in Law) pelo King’s College London – KCL • Mestre em Direito pela PUC/SP
O querido e bom dicionário “Aurélio”, numa edição de 1986 (tijolão que ainda consulto com todo o respeito), nos dá alguns significados para a palavra “vocação”: pendor, tendência, talento e aptidão, entre outros. E é margeando esses sentidos que, desde cedo, entendemos vocação como aquela inclinação natural que leva alguém (ou, ao menos, deveria levar) a exercer uma profissão (ser professor, por exemplo), a desempenhar um mister na vida (ser um artista) ou mesmo, de maneira mais transcendental, a dedicar-se ao sacerdócio ou à vida religiosa.
É tomando por mote essa ideia de vocação que analiso aqui um aspecto da vida de um dos personagens mais importantes da história do Ministério Público brasileiro – e, quiçá, da trágica história do nosso direito –, o Procurador da República Pedro Jorge de Melo e Silva, assassinado, em razão do exercício de suas funções, em meio ao infame “Escândalo da Mandioca”, aos 35 anos de idade, em 3 de março de 1982, em Olinda/PE. Completaremos, em poucas semanas, 40 anos desse ato brutal e covarde.
Pedro Jorge nasceu em Maceió, no estado de Alagoas, em 21 de setembro de 1946. Era filho de seu José e dona Heloísa. Uma criança como tantas outras nesses nossos nordestes afora.
Cumprindo uma vocação que lhe foi até então “designada”, a de servir a Deus, Pedro Jorge foi estudar, com apenas 8 anos, num dos muitos seminários do Brasil de então. De lá, aos 11, partiu rumo ao mosteiro beneditino em Garanhuns/PE. Em seguida, adolescente, saltou para o famoso Mosteiro de São Bento em Olinda/PE, casa de Deus que, até hoje, testemunha as efemeridades da cidade Patrimônio Histórico e Cultural da Humanidade. Em Olinda, ele fez vida: concluiu vários votos e formou-se em filosofia. E fez amizades: com o então abade Dom Basílio Penido, com o irmão Irineu Marinho e com Dom Antônio Fernando Saburido, este hoje arcebispo de Olinda e Recife. Conheci os dois últimos. São eles apóstolos da trágica história.
Mas, passados cerca de 10 anos com os seus irmãos de fé, Pedro Jorge, com 22 aniversários vividos, deixou o Mosteiro de São Bento, mantendo as amizades e o convívio nessa comunidade cristã, em prol da vocação laica e matrimonial. Fez o vestibular e cursou direito na Universidade Federal de Pernambuco. Em 1975, casou com Graça, com quem viria a ter as filhas Roberta e Marisa. E, no mesmíssimo ano, foi ser Procurador da República.
E é aqui aonde eu quero chegar: em Pedro Jorge, a transição da vida religiosa para a vida pública – para o direito e, especificamente, no Ministério Público Federal – deve ser vista como uma continuação de uma “vocação de servir”. Se não por intermédio do sacerdócio entre os beneditinos, pelo menos, com intensidade e desideratos diferentes, por meio do órgão federal encarregado da “fiscalização da lei” e da “justiça pública”.
Na verdade, as vocações – entendidas como a natural mistura ou somatório de pendor, tendência, talento e aptidão para o exercício de algo na vida – têm caraterísticas e matizes diversos. De logo, há diferentes tipos e campos de vocação. Na religião, na arte, na educação, na saúde e no nosso direito. E as vocações aparecem com características únicas em cada um de nós. Não vêm de forma isolada. Elas vêm misturadas a outras vocações. E também fazem parte de um processo de desenvolvimento. De um olhar específico para o mundo e para si mesmo. São produto de uma história de vida.
A vocação de Pedro Jorge para o direito, para defender o bem público e a sociedade, estava amalgamada à sua original vocação de servir a Deus, acredito. Mas não era uma vocação do tipo messiânico, tão perniciosa nos nossos dias. Pedro Jorge era o contrário do pregador messiânico. Ele era discreto e humilde. Sua vocação para o direito confundia-se com a vocação religiosa no sentido de buscar, sem tergiversar (se é que vocês me entendem), o bem e a justiça.
E foi talvez essa sua vocação, que alguns hoje podem qualificar como ingênua, que o levou ao “martírio”. Refiro-me novamente ao “Escândalo da Mandioca”, em razão do qual, Pedro Jorge, o Procurador da República responsável pelo caso, acabou assassinado. Mas isso é outra história.
Martírio
O que é um “mártir”? Para os mais espiritualizados, a palavra remete aos sofrimentos dos santos católicos. Socorro-me do “Aurélio” (sempre a surrada edição de 1986), para saber o significado do vocábulo “mártir”: “pessoa que sofreu tormentos, torturas ou a morte por sustentar a fé cristã”; “pessoa que sofre tormentos ou a morte por causa de suas crenças ou opiniões”; “quem se sacrifica, sofre ou perde a vida por um trabalho, experiência etc”.
É por aqui que continuo a história do Procurador da República Pedro Jorge de Melo e Silva, assassinado, no e pelo exercício de suas funções, aos 35 anos de idade, em 3 de março de 1982, em Olinda/PE. Uma morte por causa de sua crença na justiça dos homens. Um sacrifício, com a perda da própria vida, por um trabalho, in casu no MPF e em prol do Estado brasileiro.
Esse martírio é assim resumido pelo memorial da Procuradoria-Geral da República: “Assassinato do Procurador da República Pedro Jorge de Melo e Silva – Escândalo da Mandioca 1982. Entre os anos de 1979 e 1981, na cidade de Floresta, em Pernambuco, militares, servidores públicos, empresários, entre outros, se passam por produtores rurais e conseguem empréstimos no Banco do Brasil para plantação de mandioca. Em seguida, alegam que a seca tem destruído a plantação e recebem ainda o seguro agrícola. Esse esquema desvia o equivalente, nos dias atuais, a R$ 30 milhões de reais”. Nesse contexto, o Procurador Pedro Jorge denuncia o esquema. Logo após a denúncia, ele recebe ameaças e, sendo afastado do caso, é assassinado no fatídico 3 de março de 1982.
Foi um martírio ingênuo, dirão alguns. Ainda vivíamos, em 1982, a ditadura militar. Havia o envolvimento de militares no “Escândalo”. Em Pernambuco, Pedro Jorge não foi a única vítima, direta ou indireta, desse momento sombrio que passávamos (lembremos do Padre Henrique). Era o tempo de resistência de Dom Helder Câmara, de Dom Basílio Penido, a quem Pedro Jorge, ex-seminarista, era muito ligado. Um tempo de perseguições, de torturas, de coturnos impunes. De mortes – leia-se assassinatos – dentro e fora da comunidade de Deus.
Prefiro dizer que foi um martírio consciente. Por uma vocação de procurar, sem titubear, o bem e a justiça. Pedro Jorge estava ciente dos riscos que corria. Os depoimentos dos contemporâneos – de Dom Antônio Fernando Saburido, do irmão Irineu Marinho, do Procurador Lineu Escorel Borges e da mãe de Pedro Jorge, entre outros – não deixam qualquer dúvida. Dom Saburido, no documentário “Pedro Jorge: uma vida pela justiça” (2017), é direto: “ele estava consciente disso plenamente. Ele sabia dos riscos que ele estava correndo. Mas foi uma decisão pessoal. Pedro Jorge decidiu mesmo continuar. Ele não quis recuar em momento algum. Mas ele entendeu que aquela era a sua profissão, era a sua missão, e ele não poderia absolutamente facilitar a vida de pessoas que queriam fazer o mal, que estavam utilizando indevidamente recurso do povo”. E o depoimento do irmão Irineu Marinho, reproduzindo diálogo com Pedro Jorge, mostra que o aparelho estatal, que tinha obrigação de dar proteção ao Procurador, estava corrompido à época: “Irineu, essas pessoas que estão me ameaçando, eles vão colocar como guardas pra mim, porque eles têm poder, eles penetram em todos os ambientes, eles vão colocar como guardas pra mim as pessoas que vão me matar. Então, eu prefiro morrer sem guarda, como um cidadão que está exposto à violência e à insegurança do país”.
O julgamento do homicídio de Pedro Jorge foi também um martírio. Como no “Escândalo da Mandioca”, forças se juntaram visando à impunidade. Marchas e contramarchas processuais. Mais intimidações. Uma sentença de impronúncia que se fez escândalo e fomentou justa e popular revolta. Mas ainda havia juízes em Brasília. Júri popular. Apoio cidadão e da Igreja. Condenações. “Fugas” e mais fugas. Captura do mandante apenas em meados dos anos 1990. Cumprimento parcial da pena. Justiça tardia é meia justiça. Além de não ressuscitar o homem covardemente assassinado.
Lembremos, por fim, que, institucionalmente – e falo agora do Ministério Público Federal –, vivíamos, quando do assassinato de Pedro Jorge, uma época completamente diferente da de hoje. São dois MPFs, praticamente. O de então, de 1982 (e nos anos seguintes), rudimentar e sem proporcionar a segurança necessária aos seus membros; e o de hoje, que, muito em razão do martírio de Pedro Jorge, aprendeu duramente a lição.
E essa lição veio também em forma de homenagens. Mas isso já é outra história.
RECONHECIMENTO
Quando ingressei no Ministério Público Federal, no já distante ano de 1997, o Procurador da República Pedro Jorge de Melo e Silva, brutalmente assassinado fazia 15 anos – a vilania se deu em 3 de março de 1982, em Olinda/PE –, era constantemente lembrado e homenageado.
Pedro Jorge já era considerado – e assim ainda o é – o nosso protomártir (o “primeiro mártir”, em linguagem mais simples). Ele também já havia dado nome à Fundação Pedro Jorge, “organização sem fins lucrativos, instituída pela Associação Nacional dos Procuradores da República (ANPR) em 1985, dirigida por membros da carreira e com destacada atuação em projetos e ações de responsabilidade social”.
Mas acredito que muito do reconhecimento à memória de Pedro Jorge, naqueles anos 1990, se deva à atuação do então Procurador-Geral da República Geraldo Brindeiro, recentemente falecido e muitas vezes injustiçado pela história (quem sabe falaremos disso um dia). Após idas e vindas, os acusados pelo assassinato de Pedro Jorge haviam sido julgados e condenados. Mas o mandante do crime, um dos grandes envolvidos no “Escândalo da Mandioca”, estava foragido fazia 12 anos. Brindeiro assume a Procuradoria-Geral da República, em junho de 1995, reabre o caso e, com a ajuda da Polícia Federal, o mandante é capturado. Todos os envolvidos no assassinato cumprem, ao menos parcialmente, as penas impostas pela lei e pelo Poder Judiciário. É um parcial conforto para a família, os amigos e o Estado brasileiro.
É fato também que esses anos 1990, até começo dos anos 2000, sobretudo em razão da captura do último envolvido, trouxeram à ribalta novamente o nome de Pedro Jorge. Sua memória, a presença dos seus familiares, homenagens aqui e acolá, tudo isso era uma constante nos nossos encontros e no nosso trabalho. Falo tanto na Associação Nacional dos Procuradores da República como na labuta em si no Ministério Público Federal.
Todavia, embora a memória possa estar me pregando uma peça, ainda nos anos 2000 vi um declínio, um certo esquecimento de algo que era devido, nas nossas homenagens a Pedro Jorge. Posso estar enganado, mas isso só se reverteu, em grande estilo, em 2017, com o filme/documentário “Pedro Jorge: uma vida pela justiça”, uma iniciativa da Procuradoria Regional da República da 5ª Região e da Universidade Católica de Pernambuco.
“Pedro Jorge: uma vida pela justiça” é um média-metragem. Coisa de pouco mais de 40 minutos. Foi realizado sem fins lucrativos e com recursos (mínimos, diga-se de passagem) e pessoal próprios da PRR5 e da Universidade Católica. Conta com imagens da época dos acontecimentos. E apresenta depoimentos dos personagens de então, alguns ainda vivos. O objetivo do documentário foi resgatar a história da vida de Pedro Jorge de Melo e Silva, sua vocação e seu martírio, e recontá-la para as gerações atuais. E acredito que o fez com um bom balanço entre distanciamento histórico e emoção verdadeira. O resto não conto mais. Não devo fazer spoiler. Vão ao YouTube e assistam. É facílimo.
De toda sorte, neste ano de 2022, em algumas semanas, completaremos 40 anos do brutal assassinato de Pedro Jorge. Novas homenagens hão de vir. A Associação Nacional dos Procuradores da República e a Fundação Pedro Jorge trabalham nesse sentido. Unidades do MPF também. E já sei até da feitura de uma nova estátua, de corpo inteiro, do nosso mártir. Obra do artista Demétrio Albuquerque, que será posta e inaugurada, em local de destaque, no mês de março, na amada e trágica Olinda ou mesmo na capital Recife. Muito mais do que justo. Pedro Jorge merece que juntemos todos os pedaços do seu sofrimento, do sofrimento da sua família e dos seus amigos, em mil estátuas, todas feitas de pedra bruta e dignidade polida.
Acho que verdade está mesmo no verso do poema “É claro, Mariana”, na adaptação do advogado Gilberto Marques, recém-falecido, que representou a família de Pedro Jorge no processo do seu homicídio. Com a sua vocação, com o seu martírio, com o reconhecimento das gerações posteriores, “Pedro Jorge não morreu, ele se dividiu em milhares de pedaços. E de cada pedaço há de nascer um Pedro inteiro, para continuar a sua luta pela justiça neste país”.