Como o ex-assessor de Lula despreza a democracia representativa em artigo no qual defende a ditadura cubana contra as manifestações do “Pátria e Vida”
Por Mario Sabino, para O Antagonista
Frei Betto é uma figura icônica da esquerda brasileira. Figura de proa da barca furada da Teologia da Libertação, que misturava cristianismo e marxismo na mesma sopa ideológica, foi vítima da ditadura militar, comeu o pão que o dia amassou e, com a redemocratização, virou conselheiro de Lula, de que foi assessor especial em parte do primeiro mandato do chefão petista. Um democrata, certo? Errado. A religião de Frei Betto é o castrismo. O Pai é Fidel Castro e o Espírito Santo, Raúl Castro e o Filho ainda é Jesus, mas com uma camisa de Che Guevara.
Não é porque a estupidez bolsonarista contaminou tudo, literal e metaforicamente, que se pode furtar à necessidade de mostrar os absurdos do petismo e adjacências. Frei Betto é o petismo e adjacências. Num artigo publicado no site do Instituto Humanitas Usininos (o corretor do meu computador insiste em mudar para “Asininos”), em prol do “humanismo social cristão”, Frei Betto saiu em defesa da ditadura de Cuba de maneira, eu diria, descarada. O artigo intitula-se Cuba resiste!, o ponto de exclamação gritando a militância do autor contra as manifestações históricas em curso naquele país, sob o slogan “Pátria e Vida”, verso da canção que se contrapõe à frase “Pátria ou morte”, de Fidel Castro.
Vamos deixar de lado a patacoada repetida por Frei Betto de que o socialismo na ilha dos Castro só não deu certo por causa do embargo americano. O socialismo não deu certo na Cuba caribenha porque é um fracasso em qualquer latitude, e por isso desmoronou em 1989, com a queda do Muro de Berlim. A China só virou uma potência econômica quando adotou o capitalismo e assumiu sem vergonha o que é um partido comunista: máfia que exige fidelidade canina dos seus integrantes, em troca os enche de privilégios — e oprime inapelavelmente quem dela tenta escapar. O que importa mesmo é a essência da defesa da ditadura cubana feita por Frei Betto, que é o seu desprezo pela democracia como valor universal.
Vale a pena ler este trecho do artigo “Cuba Resiste!”:
“Quando dizem a mim, um brasileiro, que em Cuba não há democracia, desço da abstração das palavras à realidade. Quantas fotos ou notícias foram ou são vistos sobre cubanos na miséria, mendigos espalhados nas calçadas, crianças abandonadas nas ruas, famílias debaixo de viadutos? Algo semelhante à cracolândia, às milícias, às longas filas de enfermos aguardando anos para serem atendidos num hospital?
Advirto os amigos: se você é rico no Brasil e for viver em Cuba conhecerá o inferno. Ficará impossibilitado de trocar de carro todo ano, comprar roupas de grife, viajar com frequência para férias no exterior. E, sobretudo, não poderá explorar o trabalho alheio, manter seus empregados na ignorância, “orgulhar-se” da Maria, sua cozinheira há 20 anos, e a quem você nega acesso à casa própria, à escolaridade e ao plano de saúde.
Se você é classe média, prepare-se para conhecer o purgatório. Embora Cuba já não seja uma sociedade estatizada, a burocracia perdura, há que ter paciência nas filas dos mercados, muitos produtos disponíveis neste mês podem não ser encontrados no próximo devido às inconstâncias das importações.
Se você, porém, é assalariado, pobre, sem-teto ou sem-terra, prepare-se para conhecer o paraíso. A Revolução assegurará seus três direitos humanos fundamentais: alimentação, saúde e educação, além de moradia e trabalho. Pode ser que você tenha muito apetite por não comer o que gosta, mas jamais terá fome. Sua família terá escolaridade e assistência de saúde, incluindo cirurgias complexas, totalmente gratuitas, como dever do Estado e direito do cidadão.
Nada é mais prostituído do que a linguagem. A celebrada democracia nascida na Grécia tem seus méritos, mas é bom lembrar que, na época, Atenas tinha 20 mil habitantes que viviam do trabalho de 400 mil escravos… O que responderia um desses milhares de servos se indagado sobre as virtudes da democracia?
Não desejo ao futuro de Cuba o presente do Brasil, da Guatemala, de Honduras e ou mesmo de Porto Rico, colônia estadunidense, à qual é negada independência. Nem desejo que Cuba invada os EUA e ocupe uma área litorânea da Califórnia, como ocorre com Guantánamo, transformada em centro de torturas e cárcere ilegal de supostos terroristas.
Democracia, no meu conceito, significa o “Pai nosso” – a autoridade legitimada pela vontade popular -, e o “pão nosso” – a partilha dos frutos da natureza e do trabalho humano. A rotatividade eleitoral não faz, nem assegura uma democracia. O Brasil e a Índia, tidas como democracias, são exemplos gritantes de miséria, pobreza, exclusão, opressão e sofrimento.”
É espantosa a má intenção de Frei Betto. Em primeiro lugar, ele retira os assalariados da classe média, como se a classe média fosse composta apenas por profissionais liberais. Os jornalistas amigos de Frei Betto, por exemplo, são assalariados de classe média. É um ponto importante, porque a esquerda brasileira associa o conceito de classe média ao que de pior existe na sociedade, como já provou a professora Marilena Chauí — assalariada de classe média, por sinal. Compreende-se: nos países capitalistas avançados, todos eles adeptos da democracia representativa, a classe média compõe a maioria. Como gostar de uma conquista socioeconômica que o modo de (falta de) produção socialista jamais alcançou ou alcançará?
Ao colocar no mesmo saco o sistema democrático ateniense e a moderna democracia representativa, Frei Betto faz uma operação que chega a ser infantil de tão picareta que é. O que a moderna democracia representativa fez foi justamente alargar extraordinariamente o que, na antiga Atenas, era privilégio aristocrático: o voto, a capacidade de participar ativamente na formação dos governos e fiscalizar os líderes eleitos. Frei Betto simplesmente passou por cima de sete séculos de história.
Frei Betto, como ele mesmo declara, tem um conceito pessoal de democracia. Na sua visão embaçada, significa “o ‘Pai nosso’ – a autoridade legitimada pela vontade popular – e o ‘pão nosso’ – a partilha dos frutos da natureza e do trabalho humano. A rotatividade eleitoral não faz, nem assegura uma democracia. O Brasil e a Índia, tidas como democracias, são exemplos gritantes de miséria, pobreza, exclusão, opressão e sofrimento”. Ao usar a expressão “autoridade legitimada pela vontade popular”, esse benfeitor da humanidade usa de linguagem encobridora para escamotear a realidade de um regime — o cubano — que se acha “legitimado pela vontade popular” e, portanto, dispensa a democracia representativa. Encobridora é também a afirmação de que “a rotatividade eleitoral” não faz nem assegura uma democracia. Na verdade, eleições livres fazem, sim, uma democracia, o que não significa necessariamente que os valores de uma Constituição democrática, como a brasileira ou a indiana, sejam respeitados pelos pelos governantes eleitos, seja quanto atentam contra a moralidade pública, caso de Lula, seja quanto atentam contra a própria saúde da população, caso de Jair Bolsonaro. É por isso que a democracia garante aos cidadãos o direito de trocar de governantes.
Ao que consta, não há brasileiros e indianos que querem emigrar para Cuba. Mas milhões de cubanos emigraram para os Estados Unidos, e desconfio de que muitos dos que permanecem presos na ilha dos Castro até topariam vir para o Brasil, se lhes se fosse dada oportunidade, como ocorreu com médicos cubanos que vieram trabalhar como escravos do regime de Fidel durante o governo do PT. Os manifestantes do “Pátria e vida” que viram companheiros apanharem e serem presos pelos mastins da ditadura cubana demonstram que as liberdades individuais e políticas não são negociáveis por filas para comprar mantimentos escassos. É por essas liberdades que eles lutam, não por mais esmolas de um regime ditatorial fracassado.
O ex-assessor especial de Lula foi contratado pela FAO, o braço da ONU para alimentação e agricultura, para assessorar o governo cubano na implementação do “Plano de Soberania Alimentar e Educação Nutricional”. O pão é nosso, mas continua a ser amassado pelo diabo, só que para os outros.
*Publicado originalmente no O Antagonista.