
O acidente ocorrido na manhã desta segunda-feira (24), que vitimou o médico oftalmologista Araken Britto, atropelado por uma carreta enquanto pedalava em uma das principais vias de Natal, traz de volta ao debate os problemas na infraestrutura e segurança para os ciclistas na capital.
Natal tem uma das menores frotas de bicicleta, ficando em 23ª posição no comparativo com as demais capitais. Para 63,5% dos ciclistas da cidade, a falta de infraestrutura adequada os impede de pedalar com mais frequência. A segunda barreira mais apontada é a insegurança, aliada à baixa educação no trânsito, para 21,1%. Os dados são dos estudos “Estimativa de frota de bicicletas no Brasil”, publicada no Journal of Sustainable Urban Mobility em 2021, e “Pesquisa Nacional sobre o Perfil do Ciclista Brasileiro”, organizado pela Transporte Ativo em 2024.
Essa realidade é confirmada pelo presidente da Associação dos Ciclistas do Rio Grande do Norte, Fabiano Silva, e pelo coordenador do Ciclo Comitê Popular, Daniel Souza, que apontam a falta de segurança viária e estrutura cicloviária como os principais perigos enfrentados por quem pedala em Natal e na Região Metropolitana.
“A prefeitura, o Estado, o DNIT [Departamento Nacional de Infraestrutura de Transportes], a Polícia Rodoviária, Estadual e Municipal, não encaram a política pública de segurança viária como deve ser, como diz a própria Senatran [Secretaria Nacional de Trânsito]. A política de segurança viária diz que nós temos que correr atrás do índice de morte zero. Uma vida para a gente já importa”, analisa Fabiano.
Ambos também afirmam que a capital carece de fiscalização quanto ao uso das ciclovias e de educação para o trânsito. “A periferia anda de bicicleta, e para o trabalho. Você chega pela manhã ali na Ponte de Igapó, na Ponte Newton Navarro, e vê a quantidade de trabalhadores que vão para o seu destino de bike e não tem a certeza que volta. Não tem certeza exatamente por falta de campanhas e por falta de educação. Por exemplo, aquela ciclovia da Avenida 9, quando dá horário de pico, vira um local que as motos que usam, e não tem uma fiscalização da STTU, nada que impeça que essa galera realmente pare de andar na ciclovia”, afirma Daniel.
Nesse sentido, os ciclistas apontam que não falta busca por atenção e apresentações de projetos ao poder público. “A Associação dos Ciclistas do Rio Grande do Norte já vem há mais de uma década discutindo com todos os entes públicos, seja ele federal, municipal, estadual, da Região Metropolitana de Natal e algumas cidades também do interior as tratativas para adoção de políticas públicas, para o respeito à lei nacional de mobilidade urbana, que é a 12.587 de 2012, que diz que o poder público, ao executar qualquer tipo de obras, tem que respeitar a mobilidade ativa”, diz o presidente.
Entre os diversos pedidos e soluções apresentados aos entes públicos estão a proposta de um eixo cicloviário que ligue toda a Natal. “Temos projetos para toda Natal, temos um plano cicloviário sendo discutido em Natal, que está sendo implantado aos poucos”. O grupo apresentou, ainda, uma ação junto ao Ministério Público. “Para que haja fiscalização eletrônica dessas faixas, para que os motoristas evitem fazer a ultrapassagem pela direita, o que acaba colocando os veículos de transporte de massa em risco, assim como os ciclistas e pedestres”, explica Fabiano Silva.
O ciclista Fábio Fonseca, professor do Instituto de Políticas Públicas da UFRN, pesquisador sobre ciclomobilidade urbana e cicloativista, lamenta que pouco seja feito com os estudos que estão nas mãos da prefeitura da capital. “Há planos já realizados pela prefeitura de Natal, muito bem elaborados por sinal, porém que não saem das gavetas e pastas eletrônicas da STTU”, afirma.
“Vivemos numa cidade na qual a forma de mobilidade priorizada pela prefeitura é o transporte individual motorizado, o carro mesmo, sobre as demais formas de deslocamento, que são o transporte público e caminhar e pedalar”.
Ainda de acordo com o professor, a contrariedade à existência de faixas compartilhadas em Natal é unânime entre os ciclistas, mas analisa que o problema é a falta de fiscalização. “Nas conversas que eu mantenho com ciclistas, há uma unanimidade: todos e todas as ciclistas são contra as faixas compartilhadas! (…) Se não há fiscalização e/ou essa fiscalização do trânsito é precária, o trânsito fica caótico, assim a faixa compartilhada vira uma faixa exclusiva para motoristas e motoqueiros inconsequentes”, declara.
“Particularmente, eu sou favorável a faixa compartilhada, já morei em outras cidades que essa iniciativa funciona muito bem desde que haja uma fiscalização e ordenamento do trânsito. Porém, da forma que está hoje em Natal, eu me junto ao coro dos demais ciclistas e sou contra a faixa compartilhada”, completa Fábio.
O caso do Dr. Araken Britto

Era por volta das 5 horas da manhã, quando aconteceu o acidente que culminou com a morte do médico Araken Britto, nesta segunda-feira (24), na Avenida Senador Salgado Filho, nas imediações do Hospital Walfredo Gurgel, na Zona Leste de Natal. De acordo com informações da Polícia Civil, o condutor da carreta alegou que, ao atingir o médico, ele se desequilibrou e os pneus atingiram a cabeça e o tórax do oftalmologista, que morreu ainda no local, sem chances de socorro.
O motorista da carreta permaneceu no local, foi conduzido à delegacia para prestar depoimento e liberado em seguida. O teste do bafômetro não constatou ingestão de bebida alcoólica.
Durante toda segunda-feira, houve muita comoção e homenagens nas redes sociais. A Federação Norte-riograndense de Ciclismo manifestou “profunda tristeza” diante do caso e pediu agilidade em mudanças em prol da pacificação no trânsito.
“Nos deparamos, mais uma vez, com a notícia de um ciclista ceifado pela violência do trânsito em nossa cidade. Este trágico evento ressalta a urgência de uma reflexão coletiva sobre o respeito à vida e à convivência pacífica nas vias urbanas. Infelizmente, a cultura do desprezo pelas regras de trânsito e pela segurança dos ciclistas persiste”.
“Faltam palavras para descrever a indignação e a dor que permeiam nossos corações diante de tais tragédias. É imperativo que expressemos nossa solidariedade à família e amigos da vítima, pois a perda de uma vida humana não é apenas uma estatística, mas uma ferida aberta na comunidade. (…) Que este triste episódio sirva como um chamado à ação, para que juntos possamos trabalhar em prol de uma sociedade que valoriza a vida e respeita o espaço de cada um”, disse representante da entidade em nota.
O fato também foi lamentado pelos colegas ciclistas, que exprimem a tristeza da recorrência desse tipo de acidente. “Infelizmente, a gente tem que passar por isso diariamente, né? De sair de bicicleta sem saber se vamos voltar para casa vivos, mesmo andando em locais exclusivos para bicicleta. Não foi acidente, foi assassinato! O sinistro de hoje mostra a brutalidade que é viver em Natal”, disse Daniel Souza, coordenador do Ciclo Comitê Popular.
“O que a gente pede é que as pessoas tenham um pouco mais de consciência, que as pessoas entendam que em cima de uma bicicleta vai uma vida, em cima da bicicleta vai um pai de família, vai uma mãe de família que está para ir para o seu trabalho, está fazendo seu lazer, como foi o caso do médico hoje de manhã”, completou.