ARTIGO – POR: PABLO CAPISTRANO
No posfácio da edição da editora Aleph do livro Androides Sonham com Ovelhas Elétricas? que inspirou Ridley Scott o projeto do filme Blade Runner (considerado por muitos como um dos maiores filmes de ficção científica de todos os tempos), Ronaldo Bressane, tradutor do texto para o português coloca uma epigrafe de Philip K. Dick.
PKD, como era conhecido, não foi apenas “o autor do livro que deu origem ao filme” mas um dos mais importantes romancistas norte americanos da segunda metade do século passado. Introduzindo uma densidade filosófica e mística poucas vezes vista no mundo da ficção científica, Philip K. Dick, que ouvia vozes e tinha visões (podendo facilmente ser diagnosticado sem vacilo como esquizofrênico por qualquer psiquiatra em uma noite de plantão do SUS) mudou o modo como as histórias de ficção científica eram encaradas nos anos cinquenta e sessenta, dando a seus textos uma profundidade literária que não se enquadrava no rótulo de “subliteratura” direcionado pela crítica acadêmica contra esse gênero tão popular.
Na tal epigrafe selecionada por Bressane para abrir seu posfácio, PKD escreve: “A realidade é aquilo que, quando você para de acreditar, não desaparece”.
Muita gente tem se espantado com a resiliência do apoio de certos grupos (muitos inclusive formados por pessoas supostamente instruídas como médicos, jornalistas e advogados) ao presidente Jair Bolsonaro.
Como se estivéssemos em meio a uma ficção científica distópica, em um mundo pós-apocalíptico em que a verdade morreu e a matrix digital ocupou todas as esferas do mundo da vida, a impressão que muita gente tem é que, diante de áudios e vídeos de watts app não existem fatos que possam demover essas pessoas da sua fé sectária em uma narrativa que pinta um Brasil de fantasia.
Nessa realidade paralela chamada de bolsolânida a pandemia de COVID-19 é um plano globalista para desestabilizar o governo, o STF proibiu o presidente de intervir na pandemia, a invermectina funciona como tratamento precoce para a infecção por SAR-COV-2, os 15% de militares postos nos cargos comissionados do governo federal estão dando um show de perícia técnica no trato da máquina pública e a família Bolsonaro é honesta e segue os ensinamentos de Jesus Cristo.
Não quero dizer com isso, amigo velho, que eu tenha alguma ilusão de que um dia, a maioria das pessoas de meu país possa abrir da mão da ideologia (a maior criadora de realidades paralelas que se tem notícias) e tope encarar o Real de frente, com toda a sua nudez obscena.
Só um sujeito como Nietzsche poderia assumir o risco de apostar nessa aventura radical de se despir de todas as fantasias metafísicas que sustentam a estabilidade do nosso mundo pra ver que o sobrava no lugar.
O abismo que a gente cai quando perde a ideologia que estrutura aquilo que acreditamos ser a realidade é muito parecido com aquele que Nietzsche caiu em Turim, em 1889, após o colapso mental que o levou a morte na virada do século XIX para o XX.
O fato é que, mesmo diante da recusa compreensível de muitos compatriotas em encarar o buraco sem fundo em que caímos, é cada vez mais evidente que, a medida em que a peste e a fome começam a bater ferozmente às portas da casa dos brasileiros, o bolsonarismo vai ganhando os contornos de uma psicose política coletiva. Um surto ideológico que se apega a ilusão de uma narrativa em estado terminal, que se recusa a morrer e permanece no debate público como um zumbi que não tem imagem refletida no espelho.
A dúvida que fica é se essa psicose se sustenta, de mentira em mentira, de fake news em fake news, nas corretes subterrâneas de Whatts App até a eleição de 2022 ou se colapsará junto com os mortos pela peste e pela deterioração das condições de vida da população nesse ano em que vacinas caem a conta gotas e cadáveres são enterrados aos milhares todos os dias em caixões lacrados.
O que parece certo é que, quanto mais essas condições sociais e econômicas se deterioram mais a ideologia, essa grande construtora de mundos e fomentadora de crenças, se torna feroz.
Quanto mais acuado pela realidade que não ousa ir embora, mesmo quando a gente deixa de acreditar nela; mais o bolsonarismo se torna violento e radical.
Se o líder desse movimento vai conseguir ou não trazer para o Brasil a guerra (o cavaleiro do apocalipse que ainda falta para fechar a nossa catástrofe) como ajudou a trazer a fome e a disseminar a peste, é uma questão ainda em aberto.
O que podemos ter certeza é que a realidade da pandemia e suas consequências sanitárias e econômicas não irá embora tão cedo, mesmo que você ainda insista em não acreditar nela.